América Latina feminista: uma luta distante do fim

Luíza Feniar Migliosi
8 min readMay 31, 2021

Em meio à revoluções sociais,­ atraso das legislações e conservadorismo histórico dificultam conquistas das mulheres

Por Luíza Feniar Migliosi, Eduarda Magalhães, Manuela Nicotero Pestana e Sarah Catherine Seles

créditos: foto criado por rawpixel.com — br.freepik.com

O movimento feminista brasileiro surgiu no final do século XIX, com lutas pelo acesso e direito à educação por personalidades extremamente significativas, como Nisía Floresta, que fez a tradução do livro “Reivindicação dos Direitos da Mulher”, escrito por Mary Wollstonecraft. Com a finalidade de diminuir o abismo que havia no acesso à educação, Nísia também criou uma escola para meninas. Essa luta resultou em mulheres com mais voz, escritoras, donas de jornais que, já no século XX, lutavam pelo sufrágio. Segundo a professora de História Contemporânea da PUC-SP, Carla Cristina Garcia, em entrevista ao Contraponto, este livro foi o primeiro grito feminista que fundou o feminismo ocidental.

Sendo assim, o feminismo no Brasil começou a ganhar espaço durante o Estado Novo. Logo após o golpe de 1964, quando foi implantado no país a Ditadura Militar, feministas foram perseguidas e ameaçadas de morte, várias delas tiveram que sair do país, era uma luta diária pela sua sobrevivência e de seus filhos, além da luta pela causa feminista em si.

De acordo com Carla Garcia, muitas pessoas acreditam que o movimento teve início na década de 1970, com a Lei da Anistia — legislação que perdoou crimes políticos e eleitorais cometidos durante a ditadura, e permitiu a volta de exilados ao país. O retorno de algumas mulheres do exílio marca a volta da organização e atuação em movimentos femininos, muito ligados a comunidades eclesiais de base, que continuavam lutando por melhores condições de saneamento básico. No fim dos anos 70, essas ativistas criam o movimento feminista organizado, como os de hoje, os quais começam a ter demandas específicas em relação à condição feminina.

Muitas das mulheres que saíram do Brasil no período ditatorial tiveram como primeira parada o Chile, país que nove anos depois passou pela ditadura militar liderada por Pinochet. Com isso, é possível dizer que o movimento feminista chileno teve mais tempo para se organizar, já que o Golpe de Estado ocorreu apenas em 1973. Durante esse período, aconteceram várias manifestações femininas, lutando pela democracia e por seus direitos,  mostrando organização, não só na resistência contra o período ditatorial, como também atualmente.

O Chile, nos últimos anos, vem se tornado uma grande referência de movimentos feministas e isso se deu pelo fato de que, de acordo com Carla, o país adotou um modelo neoliberal absoluto, o qual resultou na privatização de todo o sistema, na pauperização extrema, no endividamento e na perda de direitos sociais e trabalhistas da população chilena. Então, no Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres de 2019,Š„… essa onda, que acumulou todas as mazelas deste governo, se esgotou e as mulheres foram às ruas lutar por seus direitos, pelas questões femininas e afim de expor o Estado violador.

Pelo fato da população ter consciência e preocupação com sua história política, o movimento feminista é essencialmente politizado. Ainda segundo a professora, as manifestações de 2019 foram realizadas no timing perfeito para que a performance alcançasse o mundo inteiro com o trecho da música cantada pelas manifestantes: “O patriarcado é um juiz que nos castiga por nascer/E nosso castigo é a violência que você não vê”.

Em entrevista ao Contraponto, Vanessa Hoppe, advogada chilena, vinculada à causa das mulheres e povos indígenas, atuante na Asamblea Feminista de Cañete e da ABOFEM ( Asociación de Abogadas Feministas), conta que foi uma das participantes que propuseram a criação da assembleia, que nasce para o 8 de março (8M), no contexto da marcha mundial pela comemoração do dia da mulher. “Trabalhar nesse sentido, funciona para conscientizar, visibilizar e alertar sobre o nome, realmente, desse tipo de preconceito e estereótipos” — afirma ela.

A pandemia mudou os planos para as reuniões da organização. Em março, Sebastián Piñera, presidente do Chile, decretou estado de exceção – medida que garante maior controle ao governo — por catástrofe em decorrência da Covid-19. “Com todas as ações de segurança, fizemos a nossa primeira assembleia, propriamente dita, com as pessoas que puderam comparecer e que não eram tantas. Temos espaço para discussão aqui a nível local e espaços feministas. Além disso, participo de um grupo de Constituição, chamado Grupo Constituyente de Cañete, que formamos com colegas de diferentes carreiras para poder dar a discussão em torno da questão constitucional antes de uma reforma no Chile, que está planejada para ser aprovada em 25 de outubro”, relata Vanessa.

A principal crítica à Constituição chilena é seu vínculo como herança do regime militar de Augusto Pinochet. Alejandra Burgos, participante do Coletivo Feminista de Curanilahue, em entrevista ao Contraponto, aponta que uma das ações da organização é “mudar a Constituição feita por Pinochet, estruturada por sete pessoas, frente essa possibilidade nós nos unimos com força e vamos sair [às ruas] para mudá-la”. Durante as últimas manifestações, os participantes apontavam o papel do Estado nos serviços públicos e nos direitos sociais, as questões relativas à segurança social e à liberdade de educação.

Hoppe também montou um grupo após as eclosões sociais, composto por uma socióloga, uma antropóloga, uma enfermeira e um historiador com descendência Mapuche — povo originário do centro-sul chileno –, o movimento promove palestras em conselhos de bairro, programas pró-emprego de trabalhos temporários, entre outros. “Começamos a dar essa palestra para entregar ferramentas e abordar a discussão da Constituição que queremos todos, porque se você entende o que é uma Constituição ou que possibilidade de mudança temos, podemos começar a discussão”, relata. “Eles continuam a fazer o programa por meio das plataformas virtuais, como Facebook e Youtube”.

A advogada também reivindica uma maior autonomia: “Não temos mecanismos de democracia semidireta. Não temos, por exemplo, perguntas e um referendo para poder tomar decisões em nível local e nacional. Temos uma forma de distribuição do país onde tudo é centralizado em Santiago. Também queremos chegar a isso com o feminismo, a descentralização de poder em discussão sobre estados federais ou discutir questões que descentralizam”.

Quando questionada sobre as consequências da reforma, Vanessa declara que espera “que deixemos de ter um Estado subsidiário e que tenhamos um Estado Social de Direito e paridade plurinacional”. Em relação ao movimento feminista, a questão de gênero pretende ter uma adesão orgânica à Constituição, de forma que direitos, como os direitos sexuais e reprodutivos, sejam incorporados à lei maior do país.

Vanessa Hoppe decidiu entrar na causa feminista para utilizar seus conhecimentos do ambiente jurídico, em busca de um conceito de justiça verdadeira que entende o gênero como um aspecto transversal. É uma questão que “permeia uma sentença judicial que muitas vezes se converte em argumentos de sentenças e que, se não os vemos com o prisma de gênero, não podemos perceber o que há para construção prévia que é mais discriminatório e prejudicial para entender os horrores com as mulheres nessa sociedade” — comenta.

Tratando-se dos movimentos feministas e as reivindicações que o circundam desde sua origem, a luta não só pela descriminalização do aborto, mas também pela legalização de sua prática através de uma legislação abrangente e justa que atribua a mulher direitos e autonomia sob sua própria carne. A América Latina, ainda que tenha em foco uma forte ebulição revolucionária no âmbito feminista — e social — nos últimos tempos, também virou palco de constituições e expoentes políticos essencialmente conservadores e, em sua maioria, do sexo masculino. Dessa forma, as mulheres vêm sendo progressivamente destituídas de seus direitos mais primordiais.

A triste volatilidade das conquistas feministas é determinada conforme a conjuntura, alerta a historiadora Carla Garcia: “toda conquista que a gente faz no movimento, são sempre conjunturais, ou seja, a qualquer momento, quando muda a conjuntura política, quando muda a conjuntura econômica, as mulheres são sempre as primeiras a perderem os seus direitos.” Assim, ainda que a legislação do aborto tenha sofrido poucos avanços ao longo dos anos, tanto no Brasil quanto no Chile, a atual guinada de direita vista no mundo, como o bolsonarismo brasileiro ou o conservadorismo de Piñera, dificulta as vitórias sociais no geral, em especial, na legalização do aborto, uma vez que diz respeito a questões, não só políticas, mas também culturais, religiosas e sanitárias.

Quando questionada se há diferenças nas reivindicações feministas dentro da América Latina, Carla Garcia lamenta: “Infelizmente, não”. Analisando o Chile e o Brasil, percebe-se que ambos são marcados por semelhanças históricas — a posição de ex-colônia, a desigualdade social, os anos de ditaduras truculentas etc — que afetam o avanço dos movimentos sociais. No âmbito da legalização do aborto, o viés reacionário persiste: “as legislações sul-americanas ou mesmo centro-americanas são muito fechadas, e quase todos os países fazem de tudo para que uma pessoa não consiga fazer o aborto legal” — explica a professora. Ela ainda reitera que, dentro dos cenários políticos conservadores observados na América meridional, ainda que exista um Código Penal que autorize o aborto em situações específicas — como em caso de estupro, risco de vida materno ou acefalia –, a prática ocorre de forma turbulenta e incerta fruto de pressões sociais. Não é só a legislação que precisa avançar nessa questão, a mentalidade de muitos também permanece limitada.

Resultante da estruturação do movimento feminista, ocorre a organização das mulheres por meio de coletivos. Em entrevista ao Contraponto, Carolina Novaes, estudante de jornalismo e participante do Coletivo Feminista Narcisa Amália da PUC-SP, aponta que “ter esse espaço de encontro de identificação de alguma forma dentro da universidade, para mim, foi muito importante”. A organização em grupos gera um contato com a teoria feminista com outras experiências e outras mulheres, fortalecendo-as.

O coletivo realiza reuniões para ler e debater sobre a retórica feminista, como forma de suprir a falta da mesma na faculdade. Novaes aponta também que “é necessário entrar em contato com a teoria do feminismo e entender essa ordem de disputa entre as mulheres, que a gente precisa subverter. O coletivo é até uma forma de sobrevivência mesmo”. E complementa que a junção do conhecimento empírico e o conceitual é essencial para a compreensão do movimento feminista.

Alejandra Burgos contou ainda sobre as atividades práticas realizadas por elas: “A gente se reúne principalmente para denunciar a violência machista contra as mulheres que vivem ao nosso redor. Nosso objetivo é lutar contra essas discriminações que sentimos em todas as áreas da nossa vida, […] para que as mulheres tenham altos cargos dentro das instituições mais importantes do Chile”.

Francisca Rodríguez, do Coletivo Viento Feminista de Lebu, em entrevista ao Contraponto, relata que “a ideia do nosso coletivo é criar um espaço seguro para mulheres em situação de vulnerabilidade” e levanta que “o suporte emocional para nós é muito importante e é nisso que focamos mais”. Os movimentos têm papel fundamental no acompanhamento de mulheres em situações críticas e na criação de uma rede de apoio. A empatia feminina é chamada de sororidade, segundo Alejandra, “a sororidade não se compreende até que se viva.”

Para ela, o feminismo tem papel fundamental em sua vida, “aprender todo dia com nossas companheiras, que são lindas, fortes e importantes, tem sido um processo de muito aprendizado para conhecer diversas formas de viver para as mulheres”. Para Claudina Camaño, também participante do Coletivo Viento Feminista de Lebu, “nenhuma mudança social que se faz na sociedade no Chile ou qualquer país da América Latina pode deixar de fora a mulher com seus temas e suas reivindicações”. Catalina Riquelme, companheira de coletivo, concorda e acrescenta sobre o movimento chileno: “É bonito, é forte, porém ainda falta muito, apesar do que já foi feito. É importante que siga vigente e sigamos trabalhando”.

Publicado originalmente no Jornal Contraponto

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